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Com gêmeas de 19 anos, aposentada e mulher que levou o marido para cirurgia, clínica de Blumenau completa 400 operações em trans


O caso das gêmeas de 19 anos trans que passaram por redesignação sexual foi o primeiro do tipo em todo o mundo, mas foram duas dentro de 400 cirurgias para transgêneros feitas por uma clínica em Blumenau, em Santa Catarina.

Criada em 2015, a Transgender Center Brazil fez todas elas nos últimos três anos, sendo a maioria dos procedimentos — 360 — de feminização facial ou corporal, como a retirada de mamas. As 40 restantes envolvem a redesignação sexual, chamada popularmente de “mudança de sexo”, termo que é evitado por ser conceitualmente incorreto.

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Entre os casos famosos entre os médicos, a mulher que levou o marido para fazer a cirurgia, até o caso de uma funcionária pública aposentada que decidiu trocar o órgão genital masculino por um feminino aos 58 anos.

Também foi no centro que a a modelo trans Alice Felis, agredida por um homem que conheceu em um bar no Rio, fez a reconstrução de seu rosto no ano passado.

As operações são conduzidas a quatro mãos: as dos médicos José Carlos Martins Junior e Cláudio Eduardo, sócios e únicos cirurgiões da clínica.

Em conversa com a coluna, José Carlos afirmou que a demanda de seu trabalho aumentou, mas que a maior parte de seus pacientes ainda é da Europa ou dos Estados Unidos. O motivo principal é o preço baixo, pela desvalorização do real.

O médico também conta que já sofreu preconceito por seu trabalho, diz que é necessário desconstruir a ideia de que todas as pessoas trans sonham com a redesignação de sexo e que a visibilidade de personalidades trans tem ajudado na redução da discriminação.

Leia trechos da entrevista.

Quais casos relevantes o marcaram?

Tenho dezenas de casos, que vão estar no meu segundo livro, Histórias de transformação. São relatos de histórias que presenciei nos últimos seis anos, que vão desde a pessoa ser expulsa de casa pelos pais quando se descobre trans até história de mulher que levou o marido para fazer a transição. Sendo que a mulher continua casada e os filhos aceitaram o pai como mãe. Acredito que sai no segundo semestre deste ano.

Qual a principal demanda da clínica?

É preciso desconstruir a ideia de que o sonho de toda mulher trans é fazer a chamada mudança de sexo. Isso não é verdade. Apenas 3% a 5% de todas as mulheres trans necessitam da cirurgia de redesignação sexual. O restante está feliz com seu órgão sexual. Essas pacientes não vão para redesignação sexual, mas para cirurgias faciais e corporais. O maior movimento da nossa clínica é de feminização facial e corporal.

Quem são as pessoas que chegam até vocês?

No início, quase todos nossos pacientes eram da Europa e dos Estados Unidos. Até hoje, cerca de 80% do nosso volume ainda é da Europa e dos Estados Unidos.

Por que há grande demanda de europeus?

Existem clínicas, mas o Brasil é considerado um país de bons resultados em cirurgias estéticas. A cirurgia tem um valor alto. Ou o paciente tem esse valor para a cirurgia, que é o caso de quem ganha em euro ou dólar. Ou se programa se programa para juntar a quantia, vender um bem.

Quantas clínicas privadas fazem redesignação sexual no país?

A única clínica que faz todo e qualquer tipo de transição no país é a nossa. Existe um médico aqui e ali que faz só genital ou a face, mas uma clínica que faz cirurgias simultâneas, a quatro mãos, é a nossa. Hoje, por exemplo, tivemos uma paciente de Madri, que fará uma feminização facial e troca de próteses de mama. Conseguimos fazer as duas cirurgias ao mesmo tempo. Isso gera redução do tempo de anestesia, de internação e pós-operatório facilitado, porque somos dois fazendo cirurgias simultâneas. A única que não fazemos em conjunto é genital, porque é potencialmente contaminante e pode causar complicações ao paciente.

Qual o perfil dos pacientes que pedem a redesignação sexual?

No começo, era de 30, 40 anos de idade. Agora, os extremos estão aparecendo. Operamos as gêmeas de 19, já operamos de 20, 21, 50, 52. Os extremos estão cada vez mais confiantes, por perceberem que é uma cirurgia segura. A Europa vem em peso.

Há na internet relatos de que uma cirurgia de redesignação custa em torno de R$ 150 mil. É por aí?

Não. É um terço disso.

O público brasileiro tem dificuldade financeira ou há menor demanda?

A maior dificuldade é a financeira e a segunda é o preparo que exige pré-cirurgia. Muitas vezes, o paciente tem dinheiro, mas não tem paciência de fazer uma terapia. Nesse caso, pega o avião e vai para a Tailândia. Muitos pacientes falam que o Brasil dificulta e preferem ir para fora.

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É frequente pacientes chegarem à clínica com a intenção de fazer a redesignação sexual e mudarem de ideia durante o processo médico?

Sem sombra de dúvida. Já aconteceu várias vezes. Para fazer a cirurgia facial ou corporal, não há necessidade de laudos profissionais. Já para a genital, há necessidade de acompanhamento de dois profissionais de saúde mental, psiquiatra e psicólogo, por um ano. No fim desse período, os dois profissionais precisam gerar um laudo afirmando que a pessoa é trans e que rejeita o órgão sexual. Essa rejeição é que vai permitir que nós operemos. Existem casos que foram ao consultório em início de transição, levados pelos pais. E quando conversamos com os pais e pacientes, percebemos que não tem indicação para cirurgia genital. Mas os próprios pais acham que precisam. É um conceito arraigado na sociedade que liga a figura da trans à retirada de pênis.

Seguem algum protocolo?

São cirurgias seguras, realizadas no mundo todo. Cada país tem sua variabilidade, de acordo com as leis locais. O Conselho Federal de Medicina (CFM) só autoriza cirurgia depois de duas terapias e um ano de terapia hormonal, com idade acima de 18 anos. A Tailândia tem fama porque a facilidade de operar é grande. Hoje, se vier uma paciente da Europa operar conosco, minha clínica nem marca consulta se não tiver dois laudos. Na Tailândia, a facilidade faz com que seja um país muito conhecido pela quantidade de cirurgias. Mas ao mesmo tempo, nem sempre seleciona a paciente correta. Lá, há muitas pacientes que se arrependeram. Aqui nunca tivemos paciente que se arrependeu, porque selecionamos bem.

Já se recusaram a operar alguém?

Já tivemos dois casos. O fato de uma paciente ter dois laudos não vai me impedir de não operá-la. Se na nossa conversa, percebermos que ela tem expectativa irreal. Se não entender o processo e o motivo da cirurgia não for ela, mas o marido, a amiga, abortamos a cirurgia.

Qual a taxa de sucesso de uma cirurgia de redesignação sexual?

É uma cirurgia com baixo índice de complicação. Existem complicações menores e maiores. As menores são sangramentos, pequenos pontos que ardem. É que mais acontece e nem podemos considerar como complicação. Existem complicações maiores que vai desde colostomia, lesão de uretra, hemorragias graves. Hoje, fazemos em quatro horas em meia, cinco horas porque somos em dois. Esse é um diferencial. Enquanto um faz um parte, outro faz outra parte. Em outro lugar, essa cirurgia leva em torno de sete ou oito horas.

Considerando todos os tipos, quantas cirurgias ao todo fazem por semana?

Entre três e quatro por semana.

Desde que começaram, o número de procedimentos aumentou?

Aumentou muito. Tínhamos uma previsão de crescimento muito grande no ano passado. Veio a pandemia e mesmo assim crescemos. Agora, mesmo com pandemia, o número de consultas aumentou absurdamente.

Quanto?

Quadruplicamos o número de consultas. Temos muitas pacientes da Europa e dos Estados Unidos que já têm o procedimento pago, mas esperam a situação pandêmica do país melhorar. Essa semana tinha uma paciente de Portugal, mas a companhia aérea cancelou a viagem dela. Na semana passada, consultei uma paciente da Califórnia e hoje, de Nova York. O crescimento de consultas está absurdo. Antes, o Conselho Federal de Medicina não autorizava a realização de consultas online. Hoje, podemos fazer por telemedicina. Todos os dias, tenho quatro, cinco consultas com pacientes desde Salvador até a Austrália.

No começo, quantas consultas faziam por dia?

Quando começamos, a primeira paciente foi muito difícil. Fiquei quase seis meses para conseguir operar a primeira paciente, porque não tínhamos resultado. A primeira paciente que operei foi uma dentista que confiou no nosso trabalho. A partir do resultado dela, outras pacientes começaram a confiar. Entre a primeira e a segunda, levou uns 40, 60 dias. Depois começou a aparecer uma por mês, duas por mês.

Desde que começaram no ramo, houve avanços?

Sim, principalmente de visibilidade. As pessoas começaram a ter rosto, identidade. Muito disso veio da exposição na mídia, em telenovelas, artistas trans, música. Isso fez com que parte da sociedade que enxergava essas pessoas como anomalias, subversivas, passasse a ver que são pessoas normais. O grande marco é quando as empresas perceberam que essas pessoas consumiam, desde roupa à música. Escutar uma música de um artista trans ou ver uma novela de um artista, a pessoa começa a não se sentir tão mal. Isso em termos de saúde mental é fabuloso. Há pacientes mais velhos, na faixa dos 48 até 55 anos, que me falaram que na infância tinham dificuldade de saber o que eram. Se sentiam gays, mas não se encaixavam. Ficavam no limbo.

Quais figuras popularizaram o que é ser trans?

O medalhista panamericano Caitlyn Jenner. Na novela, tem a Glamour Garcia, que é uma atriz trans. Isso fez com que o mundo olhasse para essas pessoas.

O que é necessário para as clínicas privadas e públicas conseguirem atender a demanda?

Essas cirurgias precisam de muito tempo de dedicação e formação, com saídas constantes para o exterior para aprender coisas novas. Isso faz com que o médico se interesse, mas não tem acesso. Isso impede que tenham mais médicos que se dediquem às cirurgias. O outro ponto é preconceito da sociedade. Eu mesmo quando comecei sofri muito preconceito e ainda sofro. Já ouvi de médicos: ‘Você estudou tanto tempo, tem duas formações e vai operar travesti?’ O cara não entende. Mas sempre entendemos isso como mais do que medicina. Você ouve conflitos e depois de um ano e meio, você recebe mensagens de paciente falando que a vida mudou.

Qual a previsão de demanda para o futuro?

É muito otimista. Temos um limite profissional, somos dois médicos. Nossa clínica conta com 11 funcionários ao todo e pretendemos aumentar a equipe. Mas temos um teto, porque não vamos contratar mais médicos, porque nossa formação é ímpar, e não temos como fazer três cirurgias dessas por dia.

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